terça-feira, 7 de abril de 2015

Uma nova fronteira para o cacau

Por Lygia Calil :Enviada especial

Quem ama chocolate e se orgulha da própria chocolatria está sempre em busca de novos sabores para explorar. Os mais aficionados já notaram que é cada vez mais comum encontrar opções diferentes no mercado brasileiro: dos famosos belgas aos africanos, passando pelos de países da América Central, cada um apresenta um sabor particular, notas de diferentes aromas e paladares que encantam os apaixonados. Mas o que dizer do chocolate de origem brasileira? Belém, Pará.


Chocolate. Produção amazônica está na mira de chefs da alta gastronomia e também da indústria, que reconhecem valor nas amêndoas de cacau forjadas sob a floresta, com sabor e textura peculiares
Dona Nena, como Izete dos Santos é conhecida, colhe o cacau no seu quintal, na Ilha do Combu, no Pará




Dona Nena, como Izete dos Santos é conhecida, colhe o cacau no seu quintal, na Ilha do Combu, no Pará







Chocolate amazônico














O cacau fino da Bahia tem ganhado espaço, mas uma nova fronteira se apresenta no horizonte. Trata-se do chocolate amazônico. Nos circuitos de alta gastronomia, ele é tratado como iguaria, e a indústria também já percebeu potencial no produto.

Gigantes no mercado, a Harald/Melken e a belga Callebaut já incluíram as amêndoas amazônicas em seus portfólios. Na linha Unique, que aponta na embalagem até as coordenadas geográficas de onde vem o cacau, a Harald lançou o chocolate 70%, produzido no Pará. Já a Callebaut apostou em um blend entre amêndoas baianas e amazônicas, no chocolate 66,8% puro de origem do Brasil.

Muito à margem da indústria, mas ainda assim celebrada por chefs brasileiros famosos, está Dona Nena, como é conhecida a ribeirinha Izete dos Santos Costa. Ela produz seu chocolate com 100% de cacau à beira do igarapé Combu, um dos afluentes do rio Guamá. Para chegar até lá, são necessários 20 minutos de barco desde Belém.

O Gastrô a visitou na semana passada, acompanhando o trecho Belém-Ilha do Marajó da Expedição Fartura, do festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes.

O chef paraense Thiago Castanho usa o chocolate de Dona Nena em suas criações desde 2010 no restaurante Remanso do Bosque, 34º melhor da América Latina no ranking da revista britânica “Restaurant”. Ícone da nova geração que ajudou a catapultar o status da gastronomia paraense no cenário mundial, Thiago e uma espécie de “embaixador” do chocolate da ilha do Combu. “Comecei a usar o produto em receitas no Remanso do Bosque e a divulgar bastante também, enviando para cozinheiros do Brasil todo”, relembra o chef.

Sempre que recebia outros chefs em sua cozinha, para jantares a quatro mãos, Thiago os levava até a Ilha do Combu para conhecer a produção de Dona Nena. “O produto começou a se popularizar e ganhar as cozinhas”, diz ele.

Artesã
FOTO: Rusty Marcelline

Trabalho final do chocolate amazônico


Durante a visita à sua casa, Dona Nena mostrou como é sua produção, que na safra atinge 15 quilos semanais de chocolate, recebendo o rótulo Filha do Combu. Todo o processo não poderia ser mais artesanal. A coleta do fruto é em seu quintal. Como vive em uma área de preservação ambiental, toda a ilha é coberta com a floresta, com cacau à disposição.

Já o processamento nem de longe lembra o que grandes empresas empregam. A fermentação das sementes é feita em um caixote de supermercado, e as amêndoas são secas ao sol em uma esteira de fibra de açaí, à beira do rio que corre manso alguns passos adiante.

Enquanto grandes produtores de cacau fino controlam incessantemente cada etapa da produção com aparelhos que medem a umidade, a atividade de micro-organismos e outros indicadores nas amêndoas, Nena se vale do “olhômetro”, ou seja, da própria sensibilidade.

Foi assim que aprendeu a fazer. “Essa é uma receita antiga da família. Eu já tinha aprendido quando criança, mas o modo de preparo acabou se perdendo no tempo. Quis recuperar para poder oferecer o produto. Aqui na ilha, somos todos extrativistas, dependentes do açaí. Mas eu queria ganhar um pouco mais com um produto processado, e me lembrei do chocolate”, relembra ela.

Para a torra das sementes, chamadas “nibs”, ela usa o forno do fogão de casa. E para chegar até a pasta de 100% de cacau, adaptou um moedor de carne. “O cacau é muito duro, cheguei a queimar dois liquidificadores tentando quebrar as amêndoas. O moedor foi a melhor solução, mas ainda preciso de um ‘muque’ forte para me ajudar”, brinca Nena.

Depois que a pasta está pronta, o cacau é posto para secar em uma embalagem de 100 gramas (que ela chama de “poqueca”), na própria folha do cacaueiro. Nena vende o produto in natura e também na versão em brigadeiro.

O resultado de tanto trabalho é um produto rústico que encantou até o chef Alex Atala, sétimo melhor do mundo segundo a revista “Restaurant” e único detentor no país de duas estrelas no guia Michellin. Atala cita o chocolate de Dona Nena no livro “D.O.M. - Redescobrindo os Ingredientes Brasileiros”, lançado no ano passado. Entre suas reflexões sobre a cozinha brasileira, assim ele descreve o chocolate do Combu: “Com sabor específico, elegante, com notas terrosas e rústicas, o cacau produzido nessa ilha é uma das maiores revelações de minhas recentes viagens à Amazônia”.

Não à toa, o chocolate entrou para o menu-degustação do D.O.M., em uma composição com mandioquinha glacê e chantili de mel de abelha indígena. Nada mau para quem vive na floresta.

Rusticidade à prova de fogo

Trunfos. Além do sabor mais intenso, o comportamento do chocolate amazônico frente a temperatura é um de seus trunfos. Pelo menos é nisso que acredita o chef francês Bertrand Busquet, diretor da Chocolate Academy São Paulo, o braço da Barry Callebaut voltado à educação.

Dos testes e degustações realizados na instituição, o caráter rústico das amêndoas cultivadas no Pará surpreendeu. “A manteiga do cacau amazônico é mais dura do que as outras. Comparada à do cacau baiano, por exemplo, tem outra reação à temperatura. Isso abre novas possibilidades de trabalho com o chocolate”, diz ele.
Do ponto de vista gastronômico, o chocolate produzido com esse cacau combina bem com produtos amazônicos. Para ele, frutas, castanhas e raízes da região são os pares ideais para uma composição harmônica.
*A repórter viajou a convite da Expedição Fartura, do festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes.








Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não permitiremos comentários ofensivos